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Artigo de José Agenor Álvares da Silva, assessor da Fiocruz/Brasília, foi ministro da Saúde e diretor da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa)
A maior política de Estado ousada no Brasil no último século — o Sistema Único de Saúde (SUS) — foi conquistada mediante o estreitamento das parcerias entre a população, o Congresso Constituinte e órgãos das três esferas governo. Concebido como política de Estado, não de governo, o SUS tem o objetivo de ampliar o acesso à atenção à saúde.
Em torno dessa causa, alicerçada em um cenário de grande dívida social, se associavam partidos políticos, tendências e espectros ideológicos antagônicos, irmanados tão somente no desejo da construção de um sistema universal, integral, equitativo e socialmente participativo.
Hoje, assistimos à completa omissão desses mesmos espectros, mais preocupados com questões afetas a interesses outros, muitas vezes inconfessos, que não aqueles que foram a força motriz para a mudança de paradigma do sistema de saúde excludente até então vigente.
Entre outras, três questões chamam atenção para o SUS, 26 anos após sua criação: vazios e deficits assistenciais, financiamento e gestão.
Os vazios e deficits assistenciais, seja por carência de infraestrutura dos serviços de saúde seja por ausência de profissionais capacitados para atendimento, precisam ser encarados como responsabilidade solidária de todos os segmentos de governo e do Congresso Nacional, de forma suprapartidária, sem proselitismo político ou corporativo.
O local de moradia de milhares de brasileiros não pode ser motivo para desatenção do Estado quanto aos seus legítimos direitos. Quanto mais distante dos centros concentradores de recursos tecnológicos, mais condições de acesso devem ser asseguradas. O que a população precisa é de humanização no atendimento e acolhimento, com respeito e dignidade, como direito adquirido e não como favor.
O financiamento da saúde, de tão batido e rebatido, está se transformando numa espécie de mantra. Parece mais um debate entre surdos e mudos ou entre anormais. Não reconhecer a insuficiência de recursos para garantir o acesso irrestrito, preconizado pela Constituição Federal, é querer tapar o sol com a peneira, no deserto escaldante das necessidades sanitárias da população.
Buscar uma política de financiamento clara para o setor, com fonte definida constitucionalmente, é o desafio que se coloca ao debate. Repassar 10% da arrecadação bruta da União? Não sei. Há que se ter responsabilidade social e coragem política para enfrentar esse debate. Além disso, é preciso reconhecer, por seu lado, que, paralelamente ao financiamento da saúde, temos de fazer uma espécie de concertação organizativa no sistema, sem a qual, toda e qualquer mudança pode redundar em flagrante fracasso, sendo que os recursos poderão cair nas mãos invisíveis de prestadores e fornecedores de bens e serviços, mais preocupados com os respectivos bolsos do que com a melhoria do atendimento.
A suposta ausência de gestão está se transformando em outro mantra, utilizado para negar os benefícios e a generosidade do SUS. Fica fácil não botar o dedo na ferida. O problema é de gestão, trombeteiam os incautos. O SUS é um sorvedouro de recursos. Qualquer volume de recursos alocados no sistema perde-se na incompetência e na má administração dos gestores do SUS, dizem. Comparam o funcionamento e os instrumentos de gestão das unidades públicas com centros de excelência privados e fingem desconhecer as realidades. Fácil discurso. Soluções? Nenhuma.
Existem problemas na gestão do SUS? Claro que existem. Então devemos nos concentrar em resolvê-los, para dotar o sistema de instrumentos adequados ao seu funcionamento, com ética, profissionalismo e compromisso social. A questão da gestão não pode ser transformada em uma cantilena para supor outro sistema capaz de dar atenção à saúde de toda população brasileira.
O enfrentamento desses problemas é responsabilidade de toda sociedade brasileira. Parlamentares, gestores públicos, trabalhadores de saúde, empresários, sociedade civil organizada e “desorganizada”, pessoas comuns, usuários do SUS. É o momento de, mais uma vez, fazer valer o respeito aos direitos de cidadania tão duramente conquistados. Afinal, sempre é bom lembrar: o SUS foi conquista da população e não concessão de iluminados de plantão.
Publicado em 5 de abril.
Fonte: Correio Braziliense.
Foto: Agência Brasil.