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Para muitos brasileiros a África é um mistério, e para muitos africanos o Brasil ainda é uma lenda. De todos os continentes, a África ainda apresenta grandes potencialidades para o Brasil, seja do ponto de vista econômico, mas também educacional e social. A conexão é muito forte, temos laços culturais mais do que enraizados, e não devemos perder isso, mesmo em tempos de crise econômica.
Durante anos desenvolvi projetos educacionais em Angola e Moçambique, e pude perceber bem de perto o quanto ainda precisamos conhecer a África de Língua Portuguesa com profundidade. Tenho a sensação de que o Brasil é visto como um “primo” que deu certo, mesmo considerando todos os problemas políticos e econômicos que estamos sofrendo neste momento.
De uma forma geral, o Brasil precisa observar com mais atenção Angola e Moçambique, sem contar potencialidades em São Tomé e Príncipe, e não somente através de grandes companhias como Vale, ou construtoras, acredito que os países africanos têm oportunidades para médios e pequenos empresários em diversos segmentos, principalmente em Educação e Saúde.
O Brasil acaba de ganhar uma obra que explica com exatidão as nuances de negócios e oportunidade do país com a África, em especial Moçambique. A jornalista, Amanda Rossi, apresenta ao público brasileiro a significativa obra “Moçambique – o Brasil é aqui”. A obra, recém lançada pela Editora Record, é um verdadeiro tratado investigativo sobre os negócios do Brasil em Moçambique. Com riqueza de detalhes, e bem fundamentado através de documentos, relatórios, entrevistas e a observações realizadas in loco, Amanda Rossi descreve Moçambique como realmente deveremos conhecer. Entre os anos de 2010 e 2013 Amanda Rossi percorreu o país e obteve diversas histórias que ajudaram a construir este verdadeiro manual sobre negócios do Brasil em Moçambique.
O Blog EXAME Brasil no Mundo conversou com Amanda Rossi sobre o livro e as experiências que ela ganhou com o desenvolvimento da obra.
“Amanda Rossi é jornalista. Formada pela USP, trabalha na TV Globo, onde foi produtora do Jornal Nacional e do Núcleo de Reportagens Especiais sobre a crise da água. Antes, integrou o Estadão Dados, núcleo de jornalismo de dados do Jornal O Estado de São Paulo. Permaneceu sete meses em Moçambique, entre 2010 e 2013, onde fez reportagens sobre a África para o Estadão, Editora Abril, Carta Capital e Le Monde Diplomatique. Começou no jornalismo em 2006, no Terra Magazine. Natural de Uberlândia (MG), vive em São Paulo há dez anos”.
BRASIL NO MUNDO: Como surgiu a ideia do livro?
Amanda Rossi: Quando cheguei a Moçambique pela primeira vez, em 2010, chamou minha atenção o grande número de negócios e projetos brasileiros. Na época, sabia-se muito pouco sobre o que o Brasil estava fazendo na África. Falava-se sobre as viagens de Lula, a abertura de embaixadas, o aumento do comércio exterior, mas não se conhecia a cara real da nossa presença no continente. Como os africanos encaravam a chegada do Brasil? O que as empresas brasileiras estavam fazendo? Elas recebiam apoio do governo? Como era a execução e quais eram os resultados dos projetos do governo brasileiro para ajudar no desenvolvimento da África? Eram perguntas ainda sem resposta. Comecei a investigar o assunto e o coloquei no centro das minhas reportagens. Ao longo do tempo, a presença do Brasil só foi aumentando. Então, decidi ir mais a fundo e escrever o livro.
BRASIL NO MUNDO: Quais foram os maiores desafios que você enfrentou em Moçambique para a produção do livro?
Amanda Rossi: Um desafio foi a locomoção por terra. São raríssimas as linhas de ônibus oficiais em Moçambique. Para ir de uma cidade a outra, há basicamente duas opções: alugar um carro ou pegar um chapa, como são chamadas as precárias vans que fazem o transporte coletivo. Eu quase sempre optei pelo chapa, para ficar em contato com a vida real moçambicana. O chapa não tem horário para sair. Você entra na van e espera até encher – de passageiros, malas e até galinhas e cabritos. Há um código de ética que não pode ser quebrado: uma vez dentro, você não pode sair para trocar de van, tem que ficar firme para fazer volume e agilizar a partida. Também não há horário de chegada. Os trajetos são imprevisíveis. Outro desafio é marcar entrevistas e se aproximar do entrevistado. Ter um intermediário é fundamental. Muitas pessoas são desconfiadas em relação aos jornalistas e seus propósitos. Ser branca, estrangeira e mulher aumenta o grau de dificuldade. Nas zonas rurais, onde poucos falam português (a língua oficial de Moçambique) é preciso se esforçar ainda mais para construir confianças. Entonação, pausas, o instante e o local do olhar e a maneira de gesticular são muito importantes. Já para obter dados e informações oficiais, não tive dificuldades. É mais fácil saber quanto a Vale pagou de imposto em Moçambique do que no Brasil, por exemplo.
BRASIL NO MUNDO: Você apresenta uma série de dados e fatos referentes à África e Moçambique com a atuação direta do ex-Presidente Lula. Como você avalia a atuação do ex-Presidente no continente africano?
Amanda Rossi: Lula foi o protagonista da aproximação entre o Brasil e a África. Antes dele, a presença brasileira mais marcante eram as novelas. Com ele, o Brasil desembarcou levando acordos políticos, projetos de cooperação e negócios, muitos negócios. Lula queria estimular uma nova geopolítica, em que o Sul (os países emergentes e em desenvolvimento) tivesse mais força. A principal forma de fazer isso, acreditava, era aumentando as relações econômicas Sul-Sul. Por isso, Lula sempre levou missões empresariais à África. Participou de diálogos entre empresas brasileiras e governos africanos. Criou linhas de financiamento para apoiar quem quisesse ir a África. Foi um caixeiro-viajante. Na entrevista que fiz com o ex-presidente, ele disse ficar “orgulhoso” quando empresas brasileiras se transformam em multinacionais e questionou para que serve um governo senão para promover negócios do país. Perguntei a ele por que citava tanto os empresários. Lula respondeu que eles eram os principais agentes, que faziam as coisas acontecerem, e que era preciso despertar o interesse deles. A contradição é que as empresas que o Brasil apoiou não necessariamente seguiram a linha solidária que o governo pregava na África. Hoje, já há protestos contra a presença brasileira. Além de incentivar negócios, Lula teve outro papel importante na África: tentou viabilizar projetos para auxiliar o desenvolvimento africano. Entre eles, uma fábrica de remédios contra a Aids da Fiocruz e campos experimentais da Embrapa. Após deixar o Planalto, Lula ainda fortaleceu a agenda de combate à fome na África. No entanto, faltou dinheiro para essas iniciativas solidárias e, hoje, o maior legado do Brasil na África são mesmo os negócios.
BRASIL NO MUNDO: Você acredita que as empresas brasileiras realmente queiram deixar um legado em Moçambique ou todas estão pela simples lógica do lucro?
Amanda Rossi: O escritor moçambicano Mia Couto disse algo bem interessante na entrevista que concedeu para o livro: “algumas das forças que hoje conduzem o Brasil tanto faz que estejam no Brasil como nos Estados Unidos, na China ou em qualquer lugar. São forças que se conduzem pelas linguagens globais do lucro”. Eu tendo a concordar com ele. As empresas brasileiras não operam em uma lógica diferente das demais empresas do mundo. Elas querem lucro, estão lá para fazer dinheiro. No início, partilharam o discurso do governo Lula de que o Brasil seria diferente, mais solidário, um povo irmão. De fato, realizam alguns projetos sociais e empregam mais africanos do que as empresas chinesas. Mas, conforme as iniciativas brasileiras foram ganhando corpo, não se nota diferenças estruturais. Vou dar dois exemplos. A exploração de carvão da Vale em Moçambique, que é o maior negócio do Brasil na África, paga impostos muito baixos e continua pressionando o governo para pagar ainda menos. Removeu centenas de famílias e ofereceu a elas casas precárias. Já a Odebrecht ergueu o segundo maior aeroporto de Moçambique, com crédito do BNDES, em uma região alvo dos interesses econômicos do Brasil. Detalhe: um dos 10 aeroportos do país fica a menos de 200 quilômetros dali. Apenas metade da população local tem água encanada e um quarto tem eletricidade.
BRASIL NO MUNDO: O seu trabalho é uma “grande investigação sobre os negócios brasileiros na África”. Como você avalia os negócios brasileiros no continente africano?
Amanda Rossi: As empresas brasileiras instaladas na África recorreram muito ao governo brasileiro para fazer negócios. Primeiro, demandaram apoio político. Em seguida, financiamento. No caso das empreiteiras, os empréstimos de bancos públicos brasileiros são vitais, porque os países africanos raramente têm caixa para pagar diretamente pelas obras. Nos governos Lula, as empresas puderam contar com essa ajuda. Mas, com Dilma, tiveram menos espaço para negociar. Por isso, dizem que sentem falta de Lula. Até agora, os principais investimentos brasileiros na África são em mineração e construção civil. Essa matriz de investimentos é um “modelo antigo”, segundo um importante diretor de um órgão econômico africano. O que ele quer dizer é que o Brasil não está sendo diferente, como propôs quando começou a se aproximar da África.
BRASIL NO MUNDO: Qual a sua percepção do povo moçambicano em relação às empresas brasileiras e aos brasileiros?
Amanda Rossi: Uma parcela do povo moçambicano se decepcionou com a atuação brasileira. Especialmente quem já foi diretamente impactado pelos negócios do Brasil, como as famílias removidas pela Vale e os camponeses que estão temerosos de que o mesmo aconteça com eles após a chegada do agronegócio brasileiro. Além de produtores de frango, que tiveram prejuízos devido à importação da galinha congelada do Brasil. Também estão ressentidos aqueles que se envolveram com projetos de ajuda do Brasil, cujos orçamentos – que já eram baixos – foram cortados durante o governo Dilma. No entanto, há moçambicanos que conservam esperança nos brasileiros. Um dos capítulos do livro mostra isso. Nele, conto a história de um grupo de camponeses cujas terras teriam sido irregularmente ocupadas por uma plantação europeia. Mesmo encurralados pela exploração internacional, estavam ansiosos pela chegada dos projetos agrícolas brasileiros. Tinham confiança de que “os irmãos brasileiros” fariam diferente e apoiariam o povo moçambicano. Eu pressionei tudo que pude, mas nada parecia abalar a fé deles no Brasil.
BRASIL NO MUNDO: Depois das suas 405 páginas, qual a maior aprendizagem que você conquistou com Moçambique?
Amanda Rossi: Moçambique me ensinou muito sobre o novo momento africano. A África está vendo sua democracia se consolidar e sua economia crescer, lutando pouco a pouco para reverter o estereótipo de continente assolado por guerras, ditaduras, fome e epidemias. Esse movimento africano está despertando o apetite de diversos atores globais. Além da Europa e dos Estados Unidos, que já estavam na África, a China chegou com força. Hoje, já é a maior parceira econômica do continente africano. Moçambique ainda me mostrou uma nova faceta do meu próprio país. O Brasil também estava entre os vorazes interessados pela África.
Vendo tudo isso, eu voltei da África com uma convicção. Durante décadas, a comunidade internacional disse para os africanos o que eles tinham que fazer para resolver os seus problemas. Joseph Ki-Zerbo, o maior historiador da África, falou que os africanos foram classificados como figurantes, para por em destaque o papel dos protagonistas. Mia Couto emendou que a dificuldade dos africanos em se pensarem como sujeitos da História vem sobretudo de terem legado sempre aos outros o desenho da sua própria identidade. Por isso, eu acredito que são os africanos que precisam guiar seus próprios caminhos.
Independentemente de quem lhes ofereça a mão (e o bolso): europeus, americanos, chineses ou mesmo nós, brasileiros.
BRASIL NO MUNDO: Para você FRELIMO e RENAMO ainda têm rusgas e feridas do passado mal resolvidas? A probabilidade de algum conflito é remota na sua opinião?
Amanda Rossi: A probabilidade de conflitos é alta. Ao longo de 2013, cerca de quarenta pessoas morreram e outras oitenta ficaram feridas devido à retomada de confrontos entre a Renamo e a Frelimo. Foi uma surpresa. O país acabara de completar 20 antes de paz, não se imaginava que a guerra pudesse recomeçar depois de tanto tempo. No centro desses novos embates, estava o crescimento econômico de Moçambique – gerado sobretudo pela exploração de minérios. A Renamo se sentiu deixada de lado na distribuição dos dividendos e ameaçou dividir o país ao meio. O sul, com a capital Maputo, ficaria com a Frelimo. O centro e o norte, onde está o novo eixo econômico do país – o carvão explorado pela Vale, o agronegócio que interessa aos brasileiros e reservas de gás inexploradas –, sob o seu comando. A Renamo chegou, inclusive, a anunciar o bloqueio da linha férrea usada pela Vale para escoar carvão. Hoje, os conflitos cessaram outra vez, mas a tensão continua.
BRASIL NO MUNDO: Como você avalia os perdões de dívidas do governo brasileiro para com diversos países africanos? Inclusive com ditaduras veladas?
Amanda Rossi: As dívidas dos países africanos com o Brasil foram contraídas durante a nossa ditadura militar, que ofereceu crédito para a compra de produtos industrializados do “milagre econômico”. Em um primeiro momento, deu certo. A balança comercial com a África explodiu. Mas o regime militar não deu importância para as garantias que os países africanos poderiam oferecer em troca. Resultado: eles não tiveram como pagar. Ou seja, são dívidas de quase 40 anos, com juros e correção. Para nações ainda muito pobres, que precisam fazer um enorme esforço para se desenvolverem, essas dívidas representam um peso. Já para o Brasil, não fazem diferença. Não existe expectativa de que os países africanos vão fazer uma faxina de débitos tão antigos, quando eles têm faxinas mais urgentes para fazer agora. E temos que lembrar que o perdão não é uma exclusividade brasileira. Europa, Japão, FMI, Banco Mundial também perdoam dívidas africanas.
Por outro lado, vale notar que o Brasil tem uma motivação que vai além da solidariedade: fazer novos negócios. Só podemos emprestar para países que têm o nome limpo na nossa praça. E os empréstimos são importantes para a expansão de empresas brasileiras na África. Então, o perdão da dívida é o principal combustível para novos negócios. Por isso, o que eu acho crítico não é o perdão de dívidas muito velhas, mas quais são os empréstimos que vamos fazer daqui para frente. Dessa vez, o Brasil está mais atento às garantias, para não estimular dívidas futuras? Quais países vão receber novos financiamentos do Brasil? E quais empresas brasileiras serão beneficiadas? É possível exigir que elas tenham compromisso com direitos humanos e com o desenvolvimento dos países africanos? Esse é o debate que temos que fazer agora, na minha opinião.
BRASIL NO MUNDO: Boa parte das empresas citadas no livro, de alguma forma, aparecem no processo da Operação Lava Jato. Inclusive com situações que envolvem os próprios investimentos na África. De que forma você analisa esta situação?
Amanda Rossi: A operação Lava Jato tem um papel educativo. Daqui para frente, as empresas que têm relações com o Estado – especialmente as empreiteiras – vão precisar se comportar de outra maneira. Afinal, a sociedade e as instituições brasileiras não aceitam mais certas irregularidades. Até lá, os negócios dessas empresas vão ser prejudicados. Isso impacta as relações do Brasil com a África, porque muitas das empreiteiras acusadas pela Lava Jato têm importantes negócios no continente africano. Com a saúde das empresas abalada, suas atuações internacionais podem diminuir. Além disso, grande parte das obras das construtoras brasileiras na África depende de empréstimos do BNDES. Agora, certamente, será muito mais difícil obter esses recursos. Mas eu sou otimista e acho que o resultado no longo prazo pode ser sadio. As empresas brasileiras podem vir a ter práticas mais éticas inclusive em outros países. E o Brasil pode ficar mais rigoroso nos empréstimos, exigindo mais das empresas que apoia no exterior.
BRASIL NO MUNDO: Quais serão os seus próximos projetos?