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O estreitamento da relação com a América Latina em geral e com a América do Sul em particular representa o fruto mais positivo da reorientação de política externa seguida após o reencontro do Brasil com sua identidade democrática nos anos 80. O ponto de partida foi a reformulação do relacionamento com a Argentina, mediante a criação paulatina a partir de 1986 de um espaço preferencial de entendimento democrático e de integração expresso, após sucessivos acordos específicos, no Tratado de 1988 que criou o Mercado Comum Brasil-Argentina.
Posteriormente, o projeto do Mercado Comum Brasil-Argentina foi ampliado para incorporar o Paraguai e o Uruguai, mas de certa forma teve seu alcance reduzido de Mercado Comum para União Aduaneira, mediante o Tratado de Assunção de 1991 que criou o Mercosul. Acertaram-se por outra parte importantes medidas de confiança como a constituição da Agencia Brasileiro-Argentina de Contabilidade e Controle de Materiais Nucleares (ABACC) e os Acordos de Salvaguardas com a Agencia Internacional de Energia Atômica (AIEA).
Com o passar do tempo, os eixos sul e latino-americanos da política externa do Brasil tomaram forte impulso. Consolidaram-se processos decisórios no Mercosul; o conflito fronteiriço Peru-Equador foi resolvido sob liderança brasileira; o Brasil tomou a iniciativa de convocar e sediar em Brasília a I Reunião de Presidentes da América do Sul.
Nos anos 2000, a América Latina em geral e a América do Sul em particular foram ratificadas como prioridade número um da política exterior do Brasil. Reforçou-se no plano da retórica a parceria estratégica com a Argentina kirchnerista, muito embora as dificuldades econômicas viessem a diminuir ainda mais o comprometimento portenho com o aprofundamento do Mercosul. A Venezuela incorporar-se-ia ao Tratado de Assunção em manobra urdida sobretudo por iniciativa argentina, país que dependia então do apoio financeiro da Venezuela.
A América do Sul, porém, em lugar de se fortalecer, passou a correr o risco de se fragmentar em grupos diferenciados: um que se agrupa em torno do Pacífico, envolvendo o Chile, o Peru e a Colombia, juntamente com o México (a Aliança do Pacífico); e outro que continua a girar em torno de um Mercosul crescentemente debilitado, mais a Bolívia e o Equador. Configurou-se, assim, conforme já foi dito, uma nova linha de Tordesilhas no espaço sul-americano.
Não obstante as dificuldades atuais, o tema da integração marca profundamente nosso presente e está destinado a influenciar decisivamente nosso futuro. A integração, na verdade, é uma realidade possível. O papel dos Governos e dos agentes econômicos deve ser, portanto, o de atuar para ampliar os limites de suas possibilidades.
O crescimento exponencial do comércio intra-Mercosul nos anos 90 deu-nos a todos a ilusão do sucesso. Ao jogar com as tarifas, esquecemo-nos do fato de que elas geram (ou inibem) comércio, mas dificilmente induzem à integração. Esquecemo-nos de que sem políticas setoriais conjuntas, sem a harmonização das vantagens comparativas de cada um mediante a integração das cadeias produtivas, sobretudo entre a Argentina e o Brasil, não haverá jamais integração. Do otimismo original passamos a um presente de crescente desilusão.
Protagonistas essenciais do processo, Brasil e Argentina são hoje países que, sem menosprezarem suas diferenças, percebem-se mutuamente como interlocutores privilegiados e parceiros essenciais na consolidação e na expansão dos seus respectivos projetos nacionais e internacionais. Compartilhamos ademais a convicção de que, para que esses objetivos possam ser atingidos, é essencial que sejam complementados sob uma perspectiva regional mais ampla.
Na prática, porém, o Mercosul, baseado originalmente na convergência de visões e de propósitos entre o Brasil e a Argentina, passou a ser regido por uma dinâmica de divergências e fricçõesreciprocamente agravantes, logo no momento em que se torna mais necessária a coesão entre os dois. Seria, portanto, particularmente importante prevenir que o Mercosul permaneça na agenda bilateral sob um signo crescentemente conflitivo. Torna-se imprescindível desenvolver uma visão de futuro do Mercosul compartilhada entre os dois. De outra forma, cada qual seguirá vendo o Mercosul no espelho de suas próprias ilusões e estaremos fadados a desencontros que poderão ter efeitos nocivos aos interesses individuais e conjuntos dos parceiros..
O Mercosul é uma utopia consciente, ou seja, uma instituição até certo ponto virtual, resultante, não necessariamente de um temor da realidade, como a maioria das utopias, mas sim do interesse em considerar a realidade como uma tarefa permanente e uma invenção perpétua. Como tal, deve estar permanentemente à espreita dos limites do possível. Ou aproximamos nossas perspectivas ou estaremos condenados a continuar encarando os mesmos fenômenos com olhos distintos e enxergando cada qual coisas diferentes, um acusando o outro de não ver o que, no fundo, talvez prefira não ver.
A vigência da aliança com a Argentina deve ser assegurada como ponto da mais alta prioridade no quadro das relações externas do Brasil. Com imaginação criativa, mais perseverança e um pouco mais de “cumplicidade”, poderemos recuperar o ímpeto do Mercosul em benefício do Brasil, da Argentina e de toda a nossa região.
*Artigo publicado no El País, em 12/05, coluna de Luiz Felipe de Seixas Corrêa.