Estado brasileiro e investimento público: lições do passado para projetos do presente

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  • 11 de setembro de 2012

 Artigo de Rafael Schleicher, pesquisador associado ao Nethis

Os cinquenta anos compreendidos entre 1930 e 1980 concentraram transformações econômicas profundas, que mudaram não somente a posição econômica relativa do Brasil no cenário global, mas também a natureza das instituições políticas e sociais do país. As instituições do Estado Brasileiro estiveram entre as que mais sofreram “metamorfoses” ao longo das diversas mudanças de “rumos” do Projeto Desenvolvimentista Nacional1. Se o Estado era ator social responsável pela liderança do projeto coletivo industrialista, a burocracia que se constituiu a partir de 1930 tornava-se cada vez mais responsável pelos contornos de tal projeto2. É nesse período em que se consolidariam determinadas “gramáticas” na política brasileira, como o insulamento burocrático, o universalismo de procedimentos e o corporativismo, além de persistentes traços do Brasil Oligárquico-clientelista3. As transformações dos cinquenta anos do projeto desenvolvimentista são conhecidas e têm sido discutidas pela literatura nacional4. Menos consolidados, entretanto, são os debates sobre as lições aprendidas e os critérios para avaliar a atuação do Estado brasileiro ao longo dessas cinco décadas. Em um contexto de aceleração considerável do investimento público do Estado desde 2003, representando quase 2,5% do PIB em 20115, é possível que a experiência passada ajude a entender a ação presente do Estado brasileiro?

Uma palestra ministrada em 22 de agosto de 2012 no âmbito de um ciclo de debates, promovido pela Diretoria de Estudos e Políticas do Estado, das Instituições e da Democracia do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (DIEST/IPEA), teve como intuito a criação de subsídios para essa discussão. A palestra foi proposta no momento em que os primeiros dados e análises da última década sobre o investimento do Estado demonstraram aumento considerável no período 2003-20116, e uma significativa mudança na composição dos gastos do Governo Federal, com mais ênfase em transferências, especialmente para outros entes federativos7. Não foi por acaso que o palestrante convidado pelo IPEA foi Ben Schneider, ilustre autor de um dos mais notórios estudos sobre a relação entre burocracia e executivo no âmbito do projeto desenvolvimentista do Governo Militar8, que propôs uma discussão sobre o seguinte tema: “O Estado desenvolvimentista no Brasil: uma perspectiva histórico-comparada”.

Sucintamente, Schneider propôs um debate sobre uma metodologia que permitisse estruturar um conjunto de critérios para avaliar os resultados do modelo desenvolvimentista brasileiro. Em outras palavras, o objetivo de Schneider foi discutir o que foi exatamente o “modelo” desenvolvimentista brasileiro. Construindo um “tipo ideal”, cujo parâmetro de sucesso é a Coréia do Sul, o modelo é composto por quatro variáveis: grau de consolidação da burocracia Weberiana, nível de apoio político ao projeto, grau de reciprocidade (entre o investimento político e o resultado alcançado), e autonomia inserida (no sentido proposto por Peter Evans, que remete ao grau de conectividade da burocracia aos setores da economia/sociedade). A partir desses quatro parâmetros, Schneider analisou a experiência brasileira como um caso médio de Estado Desenvolvimentista. O “modelo” brasileiro resultou na construção de uma burocracia incompleta (embora com ilhas de excelência), de apoio político disperso e para projetos específicos, de baixa reciprocidade (devido à incapacidade de monitoramento integrado das ações e projetos), e de autonomia inserida9 razoavelmente fragmentada. Nesse contexto, Schneider destacou ainda uma peculiaridade do modelo brasileiro: a intervenção direta do Estado via empresas públicas de capital 100% público.
 
Como a proposta de Schneider e a iniciativa do IPEA auxiliam o governo a entender as transformações recentes do Estado, economia e sociedade brasileiras? A resposta possível para a pergunta é a importância da revisão do período a partir de metodologia sólida para sistematizar lições aprendidas do projeto desenvolvimentista. O exame e sistematização dessas lições serão de grande valia para todos os servidores e pesquisadores que trabalham com questões gerais de planejamento do Estado ou mesmo aqueles engajados em discussões de políticas públicas setoriais, como saúde e educação. O debate proposto pelo IPEA com Ben Schneider terá sequência. Vale a pena acompanhá-lo.

*Acesso o currículo lattes de Rafael Schleicher.

Fontes:

1. (DRAIBE, Sonia. Rumos e metamorfoses: Estado e industrialização no Brasil 1930-1960. 2ª Edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2004).
2. (MARTINS, Luciano. Estado capitalista e burocracia no Brasil pós-64. 2ª Edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985).
3. (NUNES, Edson. A gramática política do Brasil: clientelismo e insulamento burocrático. Rio de Janeiro/Brasília: Jorge Zahar/ENAP; 1997).
4. Ver, por exemplo, as discussões sobre a agenda de pesquisa em ciência política nas décadas de 80, 90 e 2000 no Brasil a partir de: BOLIVAR Lamounier (Org.). A ciência politica nos anos 80. Brasília: UNB, 1982; MICELI, Sérgio (Org.). O que ler na ciência social brasileira (1970-1995). São Paulo: Sumaré, 1995. MARTINS, Carlos & LESSA, Renato (Coords.). Horizontes das Ciências Sociais no Brasil: Ciência Política. São Paulo: ANPOCS, 2010.
5. (IPEA. Como anda o investimento público no Brasil? Comunicados do IPEA No 126. Brasília: IPEA, 2011., pg 5).
6. (Idem, 2011)
7. (IPEA. Presença do Estado no Brasil. Comunicados do IPEA No 129. Brasília: IPEA, 2012).
8. (SCHNEIDER, Ben. Burocracia pública e política industrial no Brasil. São Paulo: Sumaré, 1994).
9. EVANS, Peter. Embedded autonomy: states and industrial transformation. New Jersey: Princeton University Press, 1995.