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José Agenor Álvares da Silva é assessor da Fiocruz Brasília e pesquisador associado ao Núcleo de Estudos sobre Bioética e Diplomacia em Saúde (Nethis), foi ministro da Saúde e diretor da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa)
Com tonalidades e contornos diferentes, a história se repete não como farsa, mas como tragédia humanitária. Uma incrível semelhança se constata entre os fatos vividos, atualmente, pela epidemia do vírus ebola, no oeste do continente africano, e a epidemia de meningite que assolou o Brasil na década de 1970.
No Brasil, sob a égide da ditadura militar, as informações sobre a epidemia de meningite eram manipuladas e censuradas, enquanto a incidência da doença estava circunscrita às populações periféricas e não ameaçava as chamadas classes privilegiadas. Somente após a doença romper as barreiras sociais e não fazer distinção entre pobres e ricos, o governo militar reconheceu a gravidade da situação e ordenou uma intervenção para debelar o problema. Foi, então, desencadeada uma das maiores campanhas de vacinação em massa que se tem notícia no Brasil.
A epidemia do ebola, no oeste da África, nos mostra, com uma crueldade alarmante, exatamente o que aconteceu no Brasil há 40 anos. Descaso, omissão e negligência. Crime hediondo. Somado a isso, a arrogância daqueles que se julgam donos do mundo. De acordo com o milionário Donald Trump, os dois cidadãos americanos contaminados pelo ebola e levados para tratamento no CDC, em Atlanta, “deveriam sofrer as consequências” por estarem onde não deveriam estar. Faz-nos lembrar daquele personagem de Chico Anísio, o Justo Veríssimo. Pobre? Não deveria nem ter nascido.
Como os fatos ocorrem no quintal dos outros, o sofrimento das famílias que convivem com suas perdas é relegado à insignificância dos mortos e do continente. É mais “saudável” se preocupar com o conflito do leste da Ucrânia, com a deblaque política do Iraque e da Síria ou com a invasão da faixa de Gaza. Afinal, nesses locais, os senhores da guerra e a indústria bélica mundial, com apoio de governos nacionais, tem um ambiente altamente lucrativo para seus negócios.
A poderosa indústria farmacêutica, de seu lado, também vem demonstrando insensibilidade e omissão. Há mais interesse na pesquisa e na produção de medicamentos para as doenças do mundo moderno do que no apoio à pesquisa para produção de vacinas que possam proteger a saúde de milhares de pessoas, secularmente negligenciadas em seus direitos de cidadão.
Durante anos, vários segmentos da comunidade internacional alertam para as condições de pobreza e miséria a que está submetida a maioria da população da África, notadamente, na região subsaariana. No campo da saúde, qualquer novo alerta que se fizer sobre a possibilidade de agravos “inusitados” à saúde dos povos daquele continente, com possibilidade de repercussão sanitária para outras partes do mundo, é considerado mantra e cantilena de sanitaristas e alarmistas desocupados e que deveriam procurar o que fazer.
Embora a BBC de Londres tenha noticiado a iniciativa de uma empresa farmacêutica inglesa de tentar produzir uma vacina até meados de 2015, causa espanto que, até o momento, não se veja nenhuma providência concreta para debelar essa epidemia por parte de governos das grandes potências detentoras da riqueza mundial.
Fora isso, o que se vê são apenas previsões catastróficas sobre o alastramento da epidemia para outros países do continente, gerando pânico e desconfiança entre a população. Nenhuma sinalização de apoio financeiro aos países acometidos por esse vírus que garanta esperança às pessoas e condições mínimas de trabalho àqueles que estão em contato direto com os doentes é percebido.
O caso da epidemia de ebola é uma vergonha deste início de século. O vírus foi descrito desde 1976, na África, como perigo real e eminente, dada a letalidade da doença. O problema é agravado ainda mais pelas precárias condições sanitárias dos países acometidos pelo ebola, pela péssima qualidade de vida da população e pelas crenças culturais da região, que propiciam condições adequadas à transmissão. Essa moléstia, tal qual a meningite no Brasil na década de 1970, só será combatida com vigor se, realmente, vier a ser considerada ameaça concreta à saúde dos habitantes de classes mais altas das nações de outras regiões do planeta.
NETHIS - Núcleo de Estudos sobre Bioética e Diplomacia em Saúde
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