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José Paranaguá de Santana*
A evolução da vida na Terra é assunto polêmico até hoje. No campo científico, a interpretação de Charles Darwin[1] sobre a origem das espécies, publicada em 1859, não foi refutada até o momento. No âmbito das acepções religiosas se admite, desde eras remotas, a existência de um criador e juiz da sobrevivência e da extinção dos seres no mundo. Ou seja, o homem busca explicações para conviver com o desconhecimento sobre a existência da vida e do próprio universo.
Referências históricas falam de um tempo em que pequenos grupos humanos primitivos catavam, em vastos territórios por onde andavam, os recursos para sobreviver. Um salto milenar para os dias atuais revela um mundo onde enormes grupos humanos se aglomeram em megacidades e pouco ou nada sabem sobre como ali chegam tantos e tantos bens disponíveis para quem os pode comprar.
Entre esses dois mundos, tantos outros foram concebidos e feneceram, numa longa experiência de recriação, onde ressaltam dois aspectos inter-relacionados: a velocidade de crescimento numérico da espécie que se tornou dominante na Terra, o Homo sapiens; e sua vocação para a vida gregária.
A presente reflexão diz respeito ao potencial humano de transformar as condições da vida no planeta[2], em especial no correr do breve século XX[3], que prossegue longevo sob a designação de globalização[4], na forma de uma marcha de insensatez[5].
A habilidade singular dos humanos para elaborar, compartilhar e acumular conhecimentos sobre o mundo e todos que nele vivem resultou em aplicações práticas desses saberes que, entre tantos outros aspectos, possibilitou a admirável produção de alimentos e outros bens de consumo que sustentam o crescimento da humanidade e sua opção pela vida em megalópoles.
Contudo, uma infeliz resultante dessas sucessivas remodelagens do mundo foi a progressiva exploração desenfreada dos recursos naturais do planeta, além de ameaças associadas direta ou indiretamente às aplicações práticas de conhecimentos que, ao longo de todos os tempos, se expressam em sofrimentos e desigualdades que separam povos e regiões do mundo.
No andar recente desse processo chama a atenção a revolucionária tecnologia disseminada sob a atraente designação da inteligência artificial, cuja característica peculiar é potencializar todas as demais, tanto na oferta de benefícios quanto na geração de riscos para a vida na Terra.
Poder-se-ia aventar o surgimento de um Homo divinum, espécie mutante dotada de poder crescente conferido por essa tecnologia que ele mesmo inventa, capaz de ordenar o mundo futuro com a dupla natureza de criador de saberes e de executor de suas aplicações.
Autores admiráveis publicaram acepções sobre o futuro da humanidade nos últimos séculos: um lugar que nunca existiu[6]; um admirável mundo novo[7]; um império mundial indesejável[8] e uma aldeia global[9]. Seus relatos apontavam, ao tempo de cada um deles, como foram usadas tecnologias até então disponíveis para construir esses mundos, mediante decisões comunitariamente adotadas ou de modo impositivo e até tirânico.
A natureza incerta do futuro se relaciona, intrincadamente, à diversidade das aspirações humanas. Seria razoável admitir que a construção de um mundo novo continuará pendente de decisões comunitárias sobre o progresso e o aumento da riqueza mundial? Ou, inversamente, que prevalecerão interesses egoístas, cegados por ambições sem limites, cuja resultante tem sido a depredação do planeta e o agravamento das desigualdades entre seus habitantes?
Caberia prosseguir indagando: qual o rumo mais provável na fase atual de gestação do futuro capitaneada por este Homo divinum que se permite o uso das tecnologias para fins beneficiosos ou destrutivos, tal qual seu antepassado?
Se o futuro depende de tal ser todo poderoso que preserva a mesma vocação de seu predecessor com relação ao uso virtuoso ou viciosos das modernas tecnologias, caberia desconfiar que o rico potencial de transformações do mundo continuará oscilando mais para a extinção que para a perenidade da vida na Terra.
Trata-se de questão candente sobre o fluxo da vida planetária, em especial porque a proliferação de tecnologias capitaneadas pela inteligência artificial ocorre celeremente e de modo irrecorrível.
Contudo, o otimismo esperançoso admite que o Homo sapiens travestido de Homo divinum seja também um Homo virtuosus. E que, portanto, devemos nos manter alerta e perseverantes na luta pela ampliação dos benefícios e não dos malefícios do progresso científico e tecnológico em todos os aspectos da vida na Terra.
O Observatório Odisseia busca prospectar e compartilhar saberes que contribuam para o uso beneficioso e para a redução ou mesmo a eliminação, no campo da saúde, de malefícios advindos do progresso científico e tecnológico e das suas aplicações. A expectativa é que esse esforço ajude, ainda que modestamente, a desequilibrar tal corda bamba a favor da ampliação de benefícios e em detrimento de prejuízos à saúde individual e coletiva.
* Coordenador do Núcleo de Estudos sobre Bioética e Diplomacia (Nethis), Fiocruz Brasília.
[1] DARWIN, C. 2018. A origem das espécies. São Paulo: Edipro, 1ª ed., 480 p.
[2] LANDES, D. S. A Riqueza e a Pobreza das Nações. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1998.
[3] HOBSBAWM, E. A Era dos Extremos – O breve século XX (1914-1991). São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
[4] SANTOS, M. 2002. Por uma globalização mais humana. In: SANTOS, M (org.). O país distorcido: o Brasil, a globalização a cidadania. São Paulo: Publifolha, 221 p.
[5] Tuchman, B. W. A marcha da insensatez: de Tróia ao Vietnã. Rio de Janeiro: José Olympio. 1989.
[6] MORE, T. 2015. A Utopia. São Paulo: Martin Claret, 133 p.
[7] HUXLEY, A. 2014. Admirável mundo novo. São Paulo: Globo, 314 p.
[8] ORWELL G. 2009. 1984. São Paulo: Companhia das Letras, 416 p.
[9] MCLUHAN M. 1972. A galáxia de Gutenberg: a formação do homem tipográfico. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 390 p.
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