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As autoridades sanitárias do mundo, inclusive do Brasil e dos Estados Unidos, estão cientes de que há verdadeira epidemia de doenças crônicas não transmissíveis que acomete a população, proporcionada pelo consumo de produtos que difundem os fatores de risco para condições crônicas, tais como o diabetes, as doenças cardiovasculares, o câncer, entre outras. Frente a esse cenário, se faz necessária ação organizada do Estado para conter a disseminação dessas doenças, que representam a maior causa de morte evitável em todo o mundo.
A propósito da epidemia, a diretora-geral da Organização Mundial de Saúde (OMS) disse, em uma reunião sobre promoção da saúde em Helsinque, Finlândia, em 2013: “Os esforços para prevenir as doenças não transmissíveis confrontam os interesses comerciais de operadores econômicos poderosos. Todas essas indústrias temem a regulação e protegem-se recorrendo às mesmas táticas”. Usam fortemente “argumentos que atribuem a responsabilidade pelos danos à saúde aos indivíduos e retratam as ações do governo como interferência nas liberdades pessoais e de livre escolha.
Esta é uma posição formidável. O poder de mercado prontamente se traduz em poder político”. Coincidentemente, ou não, todas as doenças citadas têm como ponto em comum, o risco de serem contraídas, em sua maioria, pelo consumo de produtos derivados do tabaco. Assim, torna-se imperiosa a ação do Estado, responsável por atuar nos pontos nevrálgicos dessa cadeia patogênica, que liga as indústrias, de um lado, e o trabalhador e o consumidor, de outro, indo desde a produção à exposição em pontos de venda, transformados em mensagens subliminares de propaganda desses produtos.
O tabaco é produto comprovadamente nocivo, com efeitos devastadores sobre a saúde humana. Negar isso é querer tapar o sol com peneira. Da mesma forma, é confundir a atuação do Estado na proteção da saúde das pessoas com afronta à Constituição, numa clara estratégia de misturar liberdade de expressão e convívio social com velhacaria mercadológica.
A contestação das alterações da recente lei antifumo e o conceito de ambiente coletivo fechado tem produzido argumentos verdadeiramente bizarros, que beiram a insanidade ou subserviência aos ditames da poderosa indústria tabageira. Comparar o malefício do tabaco com o risco de dirigir automóvel beira ao ridículo. Da mesma forma que aludir possíveis prejuízos aos negócios de bares e restaurantes à aprovação da lei é desconhecer o que ocorre em todas as cidades de mundo que implantaram tal medida, a exemplo da maior cidade brasileira: São Paulo.
Nos últimos 20 anos, consonante ao avanço tecnológico e ao conhecimento sobre malefícios do tabagismo, cresceu o interesse e a preocupação dos efeitos da fumaça ambiental do tabaco em locais em que não há transposição de ar, o que torna inevitável o tabagismo involuntário. A Lei 9.294/96 amadureceu e buscou definições mais abrangentes no intuito de diminuir o efeito desse tipo de poluição na saúde das pessoas.
Grande parte dos fumantes não consegue parar de fumar por livre escolha, uma vez que a nicotina, um dos componentes do cigarro, causa forte dependência, fato que a publicidade sempre omitiu. Ao contrário, a indústria durante décadas conseguiu construir uma imagem enganosa de seu produto, cujo efeito ainda perdura, independente do empenho das políticas públicas de desconstruir tal imagem.
O que a lei preconiza é o direito de não ser contaminado pela fumaça carregada de partículas cancerígenas despejadas por aqueles que estão sob o jugo desse produto. É o direito de conviver socialmente em ambiente com ar puro e sadio, seja no local de trabalho, lazer de fim de tarde ou de confraternização social.
Portanto, as medidas adotadas não extrapolam o poder-dever do Estado de promover regras para a elevação da qualidade de vida da população brasileira, sobre tudo, na redução dos custos decorrentes das doenças crônicas tabacorelacionadas que, embora possam ser evitadas, atualmente sobrecarregam todo o sistema de saúde do país e são responsáveis diretamente por mais de 200 mil mortes todo ano no Brasil.
Jose Agenor Álvares Silva, assessor da Fiocruz Brasília, pesquisador do Nethis, ex-ministro da Saúde e ex-diretor da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
Fonte: Artigo publicado no jornal Correiro Braziliense, em 2 de março de 2015.
Foto capa: Eva Carasol.