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O mote da reflexão que trago a esta mesa são as relações entre a política de saúde e a medicina, abordadas sob um enfoque internacionalista, como base para um comentário final, à guisa de conclusão.
No final da segunda guerra mundial floresceu um sentimento generalizado de solidariedade, cuja expressão nas relações internacionais configurou-se no ideário de cooperação consagrado no seio das Nações Unidas. Na prática, significava a mobilização de subsídios dos países ricos para o desenvolvimento dos países pobres ou atrasados. No continente americano, essa acepção traduziu-se na proposta de que o desenvolvimento econômico seria etapa indispensável para a superação de carências sociais da maioria das populações, com a aceitação tacitamente compartilhada de que a ajuda externa caberia aos Estados Unidos, detentor de maior poder econômico, financeiro, industrial, tecnológico, científico e militar. O ideário pan-americanista, que vinha se remodelando gradativamente desde os primórdios do século dezenove, renovou-se mais celeremente em consonância com as circunstâncias bélicas da segunda guerra mundial e com o minueto paranoico da guerra fria que se instalou a seguir.
A resposta dos Estados Unidos à explosão demográfica desencadeada no pós-guerra, e a consequente ampliação da demanda por bens e serviços de toda ordem, incluía, na área de saúde pública, a criação e expansão dos programas governamentais. Consolidou-se a capacidade institucional de controle de doenças transmissíveis e de enfrentamento de doenças crônicas. Esse enfoque era compartilhado em todos os setores e remontava aos anos 1930, com a orientação keynesiana da política do Presidente Roosevelt, mas se intensificou induzido pela tônica do planejamento e gestão governamental durante o esforço de guerra. Na fase subsequente, de paz sombreada pela ameaça de renovação do conflito bélico na era atômica, essa competência administrativa converteu-se em requisito para o desenvolvimento econômico, favorecendo a elevação da disponibilidade de bens e serviços para amplas faixas da população.
Na América Latina esse ideário de planejamento e desenvolvimento associado à intervenção do Estado na economia fazia parte da cultura e das expectativas dos dirigentes governamentais, disseminando-se com a criação de estímulos para a substituição de importações e medidas indutoras de processos nacionais de industrialização. Nesse período, as dimensões mais graves da saúde em praticamente todos os países dessa Região eram a grande incidência de doenças infecciosas, a alta mortalidade infantil e a baixa expectativa de vida, num contexto de crescimento e urbanização da população. A escassez e o descrédito nas informações disponíveis era uma limitação importante da capacidade de gestão dos serviços públicos e também do setor privado. E as preocupações enfatizavam a penúria da força de trabalho afetando todos os tipos profissionais, a insuficiência de centros de formação, bibliotecas e materiais didáticos, além da abordagem educativa tradicional desfocada das realidades nacionais.
Ante esse quadro, a medida comumente adotada foi de expansão significativa na formação de pessoal da saúde, buscando adequar essa força de trabalho ao crescimento da demanda dos sistemas de saúde. Contudo, as iniciativas desencadeadas careciam de orientações condizentes com as realidades nacionais, orientadas por modelos forâneos de intervenção, primordialmente voltados para a formação especializada destinada a serviços médicos individuais, enquanto a saúde pública continuava a lidar com doenças transmissíveis e mazelas decorrentes de deficiências sociais, mormente a ausência de saneamento básico.
A crise econômica dos anos 80 e o fracasso do comunismo, com a derrocada da União Soviética demarcada com a queda do Muro de Berlim, configuraram o cenário de revigoramento das teses do liberalismo, cujos princípios foram consagrados pelo Consenso de Washington. Sob a alcunha de neoliberalismo, de certo modo esse ideário apenas resgatou uma versão tosca do liberalismo clássico, tendo como objetivo maior a contestação das políticas de bem estar social e, no plano das relações internacionais, a irrelevância da solidariedade como orientação da cooperação internacional para o desenvolvimento.
Essa nova conjuntura internacional se refletiu, na área de saúde, na promoção de reformas setoriais, simultâneas ou meramente complementares a processos reformas econômicas e dos aparelhos da gestão pública. No sistema das Nações Unidas, a despeito da Declaração de Alma-Ata propor o lema de Saúde para Todos, as agencias e os bancos promotores de desenvolvimento adotavam orientação contraditória, apoiando reformas setoriais de saúde pautadas em dois pontos fundamentais: na limitação, ou preferencialmente na redução desses recursos setoriais; e na busca de eficiência e eficácia, com ênfase na transição para modelos de gestão e oferta de serviços privados. A resultante incontestável desses processos foi o agravamento das desigualdades e a deterioração das condições de saúde.
O Brasil trilhou a contramão dessas orientações a partir de 1985, em razão do processo de redemocratização com ênfase nos direitos sociais que sucedeu o regime militar. Os reflexos desse processo no campo da saúde foram consagrados na Constituição da República de 1988, ao definir a saúde como ‘direito de todos e dever do Estado’ e estabelecer o Sistema Único de Saúde. Tais avanços representam, simultaneamente, contribuições e resultantes do processo mais amplo do conjunto da sociedade, a partir do movimento social desencadeado na década anterior sob o lema ‘democracia é saúde’ , que passou a ser designado de Reforma Sanitária Brasileira.
A influência da política nacional de saúde tem sido determinante na modelagem e execução da agenda brasileira de gestão da educação e do trabalho nesse setor, inclusive e acentuadamente, no caso da medicina. Ademais, essa influência vem ocorrendo de forma sistemática e articulada com as agendas internacionais. Dedução secundária é que a experiência brasileira tem-se impregnado da ideologia e das experiências práticas desenvolvidas nos cenários regionais e mundial.
Nas primeiras décadas da segunda metade do século passado, a debilidade institucional vigente na maioria dos países latino-americanos não lhes permitia elaborar avaliações e propostas de intervenção ante as deficiências de recursos humanos de seus sistemas de saúde. Situação que ocasionou o surgimento de diversas iniciativas que, embora compartilhadas pelos próprios países alvo, geralmente eram deliberas e executadas com forte interferência externa, por agências de outros países ou veiculadas por organismos internacionais.
O objetivo predominante nessa fase era preparar professores de medicina e saúde pública, treinar novos profissionais e especialistas e, quando possível, criar escolas ou ampliar suas vagas, em função da expansão dos serviços de saúde. Embora com certa relutância, foi-se confirmando a baixa efetividade dessas iniciativas, em razão das diferenças culturais entre os países e das deficiências crônicas das instituições educacionais. Também, logo cedo se revelou um efeito colateral indesejável dessas estratégias, a ‘fuga de cérebros’ causada pela retenção de profissionais após estágios ou cursos no exterior, ou para lá atraídos depois de formados nos países de origem.
Novas escolas de medicina foram criadas nesse período, contando com apoio externo, ensejando um processo que gradualmente passou a ser adotado autonomamente pelos países, como foram os casos mais expressivos do Brasil, México e Colômbia e, com menor intensidade, Peru, Equador, Bolívia, Chile e vários países centro-americanos. Em alguns países, antes da criação de novas escolas, as já existentes optaram pela expansão em larga escala de suas vagas. O recorde ocorreu na Universidade de Buenos Aires, que em um só ingresso (1973) efetuou 12 mil matriculas iniciais nos cursos da área de saúde.
Embora essas medidas tenham contribuído para reduzir a escassez geral de médicos nos países, não lograram alterar a situação de saúde. Uma das razões mais alegadas apontava o modelo de formação médica, geralmente transferido da experiência externa, sem correlação com os sistemas de serviços de saúde do próprio país e, menos ainda, às demandas nosológicas de suas populações.
Desde o início do período em consideração, com base em uma série de conferências internacionais promovidas pela Opas (Colorado Springs, EEUU, em 1952; Tehuacan, México, em 1954; e Viña del Mar, Chile, em 1955), buscou-se reformular a educação médica, mediante inclusão de disciplinas e criação de departamentos medicina preventiva e social nas faculdades. Outras medidas posteriores, também patrocinadas pela mesma organização, incluíam o treinamento de lideranças docentes, inclusive diretores das escolas na área de saúde, versando sobre a formulação e manejo de novas ferramentas analíticas e de novas abordagens para melhorar o desempenho do processo educacional.
Dentre outras contribuições da Opas destacam-se a criação da Bireme e do Programa Livro Texto, além do apoio e orientação na criação de associações de ensino das profissões de saúde, a exemplo da Federação Pan Americana de Escolas e Faculdade de Medicina. Essas iniciativas contavam com patrocínio de entidades congêneres dos Estados Unidos e subvenção de fundações privadas daquele país, interessadas em melhorias na formação desses trabalhadores segundo parâmetros do chamado ‘mundo desenvolvido’.
Novos enfoques nas estratégias de desenvolvimento de recursos humanos em saúde nos países latino-americanos foram introduzidos a partir dos anos sessenta, refletindo a tendência mundial identificada com o ‘mantra do planejamento e gestão das políticas públicas’ que floresceu no pós-segunda guerra mundial.
A criação de novas de escolas de medicina persistiu ao longo de todo o período, com ondas periódicas de inibição dessas inaugurações, geralmente por pressões corporativas das entidades médicas, preocupadas com alegadas pletoras dos mercados de trabalho dos respectivos países, além de carências organizacionais e pedagógicas de suas escolas.
A renovação de orientações pedagógicas foi intentada em muitos lugares, incluindo propostas de integração curricular entre diferentes cursos profissionais mediante escolas ou centros de ciências da saúde, inclusão de atividades na rede de serviços de saúde e na própria comunidade, além da ênfase em conteúdos de medicina preventiva e social. Entretanto, essas experiências não acompanharam o mesmo ritmo da criação de cursos e faculdades, além de quase sempre fenecerem em razão de falta de sintonia entre os sistemas educacionais e de saúde dos países.
Com relação aos problemas crônicos de carência de médicos nos serviços de saúde, as estratégias de maior expressão incluíam: o estágio rural curricular para acadêmicos de medicina (e algumas outras profissões de saúde); o serviço médico obrigatório (designado como serviço social obrigatório) em pequenas localidades no interior dos países, com duração de seis meses a um ano; e a oferta de incentivos salariais para estimular a fixação de profissionais nas comunidades pobres ou longínquas.
Quanto às experiências de serviço social obrigatório, a de maior monta ocorreu no México, a partir 1959, com a distribuição temporária de recém-formados em áreas desprovidas de médicos, onde deveriam atuar com supervisão de suas escolas ou universidades de origem, de forma integrada com os serviços locais de saúde. Essas duas características foram quase sempre negligenciadas, sob as mais diversas alegações, causando desgaste e desprestígio da estratégia. Outros países adotaram políticas similares, com dificuldades e resultados também assemelhados, com os participantes reclamando de seu próprio despreparo para atuar e da falta ou crônica deficiência dos recursos locais disponíveis para enfrentar os problemas, além da falta de retaguarda tanto da academia quanto da rede de serviços. Outro efeito esperado era a fixação dos profissionais nas localidades ou mesmo na região onde realizavam o estágio obrigatório, o que raramente foi comprovado.
Nesse período, a especialização médica se disseminou por toda América Latina, com o sistema de residências. Mesmo sem absorver todos os recém-formados, levou à situação vigente de predomínio de especialistas no mercado de trabalho em saúde, contribuindo para a concentração de médicos nas grandes cidades e consequente escassez nas regiões interioranas. Aspecto que representa a dificuldade central para o provimento de serviços em vastas áreas dos sistemas nacionais de saúde, acentuadamente as mais carentes do ponto de vista socioeconômico.
A retomada do enfoque educacional no escopo da agenda de experiências compartilhadas na América Latina, especialmente naquelas veiculadas pela Opas, têm se restringido, nas últimas décadas, ao fortalecimento da estratégia de Atenção Primária a Saúde (APS). As orientações predominantes se baseiam na participação do ‘médico de família’, nos moldes do sistema de saúde cubano, ou da equipe de ‘saúde da família’, segunda a proposta do SUS brasileiro.
Diversos aspectos foram deixados de lado nessa breve revisão histórica. Outros foram apenas ventilados, exemplo da migração internacional de pessoal de saúde que, embora questão relevante em várias partes do mundo, apenas recentemente adquiriu importância na América Latina e, particularmente no Brasil. Constituem experiências importantes no âmbito das relações de cooperação de alguns países da Região com Cuba, visando o provimento de médicos nos respectivos sistemas de saúde, especialmente no componente de atenção primária, alcunhado no Brasil como ‘atenção básica’.
Esse apanhado histórico admite concluir que as políticas e estratégias experimentadas num determinado país nem sempre levam a resultados beneficiosos, ao serem adotadas acriticamente em outros contextos nacionais, ainda que essas nações partilhem identidades históricas, políticas ou culturais. Contudo, a análise e a avaliação dessas experiências compartilhadas contribuiriam para iluminar a construção do futuro das relações entre ‘medicina e sociedade’.
A apreciação sistematizada desses antecedentes é, pois, o desafio que apresento ao CFM e sua Comissão de Humanidades em Medicina, no contexto do debate posto neste congresso sobre a medicina na modernidade, sob o jugo da acepção flexneriana, tensionada entre ciência e arte.
Encerro esta mensagem expondo a meditação que me foi sugerida por um colega , ao revisar as notas preliminares que elaborei para esta apresentação:
Flexner é apenas um ator de um drama histórico escrito por cada um dos médicos e pesquisadores da área. Segundo Heidegger, a técnica é a essência da modernidade e a técnica não é um instrumento, nem um meio, é um modo de mostrar as coisas em disposição de ‘requisitabilidade’. O que institui a UTI, a usina hidrelétrica e a bomba atômica é uma “colocação de tudo que há na natureza no modo de uma disponibilidade de itens que podem ser requisitados”. Requisitado para quê? Para controlar a doença, gerar energia produtiva ou energia destrutiva. O mesmo modo de pensamento está em tudo e ninguém é ator principal do drama da modernidade. Todos estão a serviço da técnica. Olhe o seu site, pelo que você tanto faz, e veja que ele também põe tudo à disposição para o conhecimento do leitor ou do “buscador”, com apenas um clique. (Roberto Nogueira).
Roberto Passos Nogueira é médico, pesquisador do IPEA, estudioso de filosofia.
* José Paranaguá de Santana é médico, mestre em Medicina Tropical e doutor em Ciências da Saúde. Coordenador do Núcleo de Estudos sobre Bioética e Diplomacia em Saúde e assessor do Centro de Relações Internacionais da Fiocruz, Diretoria de Brasília. Titular da Academia de Medicina de Brasília. Recebeu do Ministério da Saúde a Medalha do Mérito Oswaldo Cruz (categoria ouro). Foi conselheiro do CRM/DF e consultor da Organização Pan-Americana da Saúde.
Apresentação em mesa redonda sobre “A arte de fazer ciência”, durante o IV Congresso Brasileiro de Humanidades em Medicina, promovido pelo Conselho Federal de Medicina, em Recife (PE),em 6/11/2014.