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O mais importante periódico médico-científico mundial, o inglês The Lancet, publicou no início deste ano um contundente informe sobre as deletérias consequências de alguns componentes da governança global sobre a saúde humana. Preparado por especialistas de diversas partes do mundo e utilizando farta documentação, o informe denuncia as políticas de austeridade receitadas após a crise econômica global; a ação de corporações transnacionais de medicamentos e alimentos; e as regras do comércio internacional e da propriedade intelectual, entre outros fatores, como os principais vilões globais da saúde da população de países em desenvolvimento.
As políticas de ajuste fiscal e austeridade desmontaram sistemas de proteção social e de saúde mais que cinquentenários, o que provocou o aumento da mortalidade infantil e de diversas doenças, além de prejudicar a equidade no acesso a serviços fundamentais para a saúde das populações. Desde o início dos anos 1980, instituições financeiras internacionais condicionam empréstimos a programas de ajuste estrutural que exigem cortes no orçamento social e de saúde, sem nenhuma comprovação de vantagens comparativas destas medidas na reativação da economia ou de seus efeitos sobre a saúde humana.
O regime de propriedade intelectual e industrial restringe o acesso de bilhões de pessoas a medicamentos essenciais para a restauração da saúde. Apesar de a comunidade global de cientistas e acadêmicos produzir um volume enorme de estudos e pesquisas sobre política, sistemas e práticas no campo da saúde, na prática, a utilização de seus benefícios acaba ficando restringida por segredo ou por barreiras levantadas pelos direitos de propriedade intelectual.
Se há tamanha concordância quanto às causas das constatações aqui mencionadas, por que pouco se faz para mudá-las? A Comissão Lancet concluiu que isto se deve à ausência de espaços onde a saúde das pessoas – o mais precioso bem que a vida pode proporcionar a qualquer ser humano – receba a adequada atenção. As principais causas são políticas e globais e estão fora do âmbito exclusivo de ação de governos nacionais ou da Organização Mundial da Saúde.
De forma extremamente original, a Comissão propõe duas medidas que podem encaminhar preciosas soluções: um Painel Científico sobre inequidades em saúde, composto por universidades e outros integrantes da mais alta reputação mundial, para medir e gerar mais e melhores evidências sobre a situação e suas causas; e uma Plataforma de Parceiros Múltiplos nas Nações Unidas, reunindo agências multilaterais, sociedade civil, ONGs e empresas privadas para propor ações positivas intersetoriais, visando mudar as diversas situações nocivas, além de propor sanções aos responsáveis, por exemplo, por meio de tribunais internacionais específicos.
A proposta está sendo amplamente difundida e, na medida em que se tornar realidade, poderá trazer esperanças para que estas imensas injustiças sejam sanadas e o mundo caminhe para uma situação de saúde global mais justa e equitativa.
*Paulo M. Buss é diretor do Centro de Relações Internacionais em Saúde (Cris/Fiocruz), membro titular da Academia Nacional de Medicina e membro da Comissão The Lancet.
Texto originalmente publicado no jornal O Globo em 5/6/2014.
Foto: unb agência