Notícia publicada em:
Luis Eugenio Portela defende que é possível ter padrões tecnológicos baseados em eficiência social e solidariedade
Como mudar a atenção à saúde no Brasil, superando o predomínio de práticas individualistas, biologicistas, curativistas e hospitalocêntricas – sem prejudicar o cuidado individual, curativo e hospitalar e aos aspectos biológicos, quando necessário? Como ter um modelo que dê conta da integralidade, com custos que a sociedade consiga arcar? Como dispor de tecnologias, mas que atendam não só às doenças, mas também aos determinantes sociais da saúde?
Essas reflexões foram feitas pelo presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), Luis Eugênio Portela, durante a conferência de abertura da III edição do Ciclo de Debates sobre Bioética, Diplomacia e Saúde Pública, realizada em 4 de abril, com o tema Tecnologias de Saúde: ambivalências e potencialidades.
“Para mudar, é preciso reconhecer que existe uma base tecnológica que pode ser aproveitada e impregnada por novos valores para a busca de novas utilizações. Essa mudança pressupõe a democratização da gestão dos serviços de saúde e da definição dos investimentos de pesquisa. Ou seja, uma série de medidas, que se concretiza no dia a dia, pode desencadear mudanças no modelo tecnológico de modo a que venham a atender à coletividade e à integralidade”, diz Portela.
O presidente da Abrasco defende que a transformação do padrão tecnológico não será instantânea ou automática. A alternativa é o empoderamento da população, com a superação da aplicação meramente técnica do conhecimento científico e a ampla difusão dos conteúdos científicos. “É necessário que haja a tradução do conhecimento para que as pessoas possam de fato compreender como funcionam as tecnologias”, exemplifica Portela.
Ele sustenta que as tecnologias são ambivalentes, ou seja, ainda que tenham sido criadas para promover certos valores ou alcançar determinados propósitos, podem ser revertidas para outros valores e outros propósitos. Existem potencialidades que estão suprimidas por interesses particulares, que impedem que os usuários exerçam sua criatividade e identifiquem novas possibilidades das tecnologias. “Um exemplo é a internet, cujo padrão de propriedade industrial representa um entrave ao desenvolvimento de suas potencialidades”, explica.
BASE TEÓRICA – Portela apresentou três teorias desenvolvidas pelo filósofo da tecnologia, Andrew Feenberg: a teoria instrumental, a substantiva e a crítica. De acordo com a primeira, a tecnologia é sempre neutra do ponto de vista de valores e propósitos: apenas a sua utilização pode qualificada como boa ou má, adequada ou inadequada. Essa teoria peca pela ingenuidade, ao crer que as tecnologias são criadas e desenvolvidas sem visar a fins determinados e a interesses particulares. A teoria substantiva, ao contrário, sabe que as tecnologias carregam valores sociais e propósitos específicos, mas não percebe que esses valores e propósitos são humanos e históricos e não imanentes às tecnologias.
A teoria que mais agrada ao presidente da Abrasco é a teoria crítica, que reconhece a não-neutralidade axiológica das tecnologias, mas acredita no poder das pessoas em determinar os valores carreados pelas tecnologias. Nesse sentido, assim como podem visar apenas ao lucro econômico de alguns ou ao controle dos trabalhadores pelos capitalistas, as tecnologias podem ser desenvolvidas para a promoção da igualdade, da democracia e da liberdade.
Ele afirma que, desde a Revolução Industrial, os impactos das novas tecnologias apresentam dois lados: positivo e negativo. Houve aumento da expectativa de vida, progressos na comunicação, no transporte e em outros setores. “O desenvolvimento tecnológico melhorou muitas coisas, mas trouxe consequências negativas e desastrosas, como os impactos ambientais, aquecimento global, aumento das desigualdades sociais, má distribuição e concentração de riquezas”, acrescenta. No caso das tecnologias de saúde, há muitos efeitos positivos de prevenção e tratamento de doenças, mas também inúmeros casos de iatrogenia – complicações causadas ou resultantes de tratamento médico – como a aspirina, que é a principal causa de hemorragia digestiva alta. “Note-se que os efeitos negativos se produzem mesmo nos usos terapêuticos”, explica.
CUSTO E DESIGUALDADE – O presidente da Abrasco afirma que a relação custo efetividade das tecnologias de saúde tem sido problemática, enquanto o custo aumenta, a efetividade diminui. Ele conta que pequenos grupos de médicos, engenheiros e economistas de grandes empresas determinam quais tecnologias merecem receber investimentos para o seu desenvolvimento. “Em geral, adotam apenas dois critérios para tomar a decisão – desirability e affordability – que podem ser traduzidos em uma só pergunta: há mercado para essa potencial nova tecnologia?”, afirma.
Portela explica que a incorporação de tecnologias é a causa das despesas crescentes dos sistemas de saúde. “Obedece uma ordem econômica, mais do que uma racionalidade técnica”, diz. A reflexão revela a desigualdade no acesso às tecnologias, que estão concentradas em determinadas áreas, negligenciando outras. “No caso do Sistema Único de Saúde (SUS), a incorporação de tecnologias obedece à lógica do mercado que privilegia o tratamento sintomático e negligencia a prevenção de doenças e a promoção da saúde”, conclui.