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Artigo de Claudia Chamas, pesquisadora da Fiocruz e ex-vice-presidente do CEWG, e Paulo Buss, diretor do Centro de Relações Internacionais em Saúde e ex-presidente da Fundação Oswaldo Cruz
Em maio passado, a 65ª Assembleia Mundial da Saúde (AMS) – órgão máximo de deliberação da Organização Mundial da Saúde (OMS) – aprovou uma histórica resolução sobre o financiamento global da pesquisa para a geração de novos medicamentos e vacinas de interesse da população brasileira e de outros países em desenvolvimento. O documento se apoia em um amplo e longo processo de entendimento sobre as fronteiras e correlações entre a saúde pública, a inovação tecnológica e as políticas de propriedade intelectual. Em 2008, os Estados-membros da OMS aprovaram a Estratégia Global e um Plano de Ação sobre Saúde Pública, Inovação e Propriedade Intelectual, um acordo político e técnico para orientar a geração, a produção e o acesso de soluções terapêuticas satisfatórias a populações negligenciadas. Trata-se de um divisor de águas para a saúde global, exaltado pela presidente Dilma Rousseff na Assembleia Geral das Nações Unidas, em 2011, e pelo ministro da Saúde Alexandre Padilha na abertura da AMS este ano. Dois eixos centrais a serem enfrentados pela Estratégia são o crônico subfinanciamento à pesquisa e ao desenvolvimento (P&D) e as falhas na coordenação das atividades de investigação sobre doenças que atingem as populações de países menos favorecidos.
A Estratégia e a recém-aprovada resolução tomaram em consideração fatos de grande impacto para o acesso à saúde. Em 1998, o Fórum Global para a Pesquisa em Saúde cunhou a frase “o gap 10/90”, indicando que apenas 10% da pesquisa era dedicada aos problemas de saúde de 90% da população mundial. Desde então, ocorreram algumas mudanças no cenário, como a entrada de fundações, o aporte de recursos assistenciais e o esforço sistemático de países emergentes como o Brasil, revertendo em novidades no portfólio de medicamentos. Como exemplo, podemos citar a combinação em dose fixa de artesunato e mefloquina, lançada pela Fiocruz e pela Iniciativa Medicamentos para Doenças Negligenciadas (DNDi), que resultou em uma eficaz indicação contra a malária. Não obstante certos avanços, a situação mundial permanece dramática e desproporcional.
Os problemas não se restrigem às doenças negligenciadas. É bem relatada a corrente crise da indústria farmacêutica, haja vista o declínio no número de novas moléculas aprovadas e as patentes de blockbusters que estão a expirar e não são repostas por produtos patenteados com resultado comercial semelhante. Por outro lado, antibióticos e vacinas não parecem atrair tanto interesse da indústria quanto a pesquisa para doenças crônicas, acarretando um déficit de terapias em um momento sensível, em que se identifica uma disseminação de bactérias resistentes às prescrições disponíveis. Trata-se de falhas de mercado, isto é, necessidades que não são atendidas pelos incentivos econômicos dominantes e que ensejam urgente intervenção em nível global.
A implementação da Estratégia, que aponta correções para as lacunas que o mercado não preenche, se materializou com o Grupo Consultivo de Especialistas em Pesquisa e Desenvolvimento: Financiamento e Coordenação (CEWG, na sigla em inglês), composto por profissionais nomeados a partir de um processo gerenciado pela OMS e com participação de seus Estados-membros. O CEWG produziu um relatório (disponível em www.who.int/phi/news/cewg_2011/en/) com recomendações inovadoras, que incluem a criação de contribuição governamental obrigatória de 0,01% do PIB para todos os países, distribuindo-se, de modo mais equilibrado, as responsabilidades. Estes recursos deverão ser aplicados em P&D em situações nas quais a tecnologia não existe ou não é a mais adequada ou o preço do produto não é compatível com a realidade econômica dos países em desenvolvimento.
É uma mudança paradigmática, criando-se recursos previsíveis e constantes aplicados aos objetivos das sociedades mais pobres. Os resultados das pesquisas associadas a esta procedência financeira serão tratados como bens públicos globais, contribuindo para desvincular o custo da pesquisa do preço do medicamento. No campo da coordenação, propõe-se que seja criado um observatório global da pesquisa e desenvolvimento em saúde com o monitoramento dos fluxos financeiros e a definição de prioridades. Uma convenção global de efeito vinculante é o mecanismo político de alto nível previsto para interconectar os mecanismos de financiamento e coordenação. Nesse contexto, a OMS faz jus a um papel central, valorizando o multilateralismo, com a participação equitativa de todos os países nas esferas decisórias. Estas iniciativas vão ao encontro da necessária reforma da OMS, adicionando novas perspectivas, tais como melhora na previsibilidade financeira.
São propostas ousadas que foram muito bem recebidas por diversos segmentos da sociedade e personalidades como o Prêmio Nobel de Economia Joseph Stiglitz. Também são o ponto de partida para o que se espera seja uma sólida plataforma multilateral de debates, que gere resultados baseados sobretudo nas necessidades de saúde das populações, uma vez que os investimentos guiados pelo mercado não se mostraram eficazes para solucionar muitas prioridades do Sul.
Com a aprovação da resolução pela AMS de 2012, que acolheu o relatório do CEWG, foram estabelecidas algumas metas. O documento inaugura um processo de diálogos aprofundados sobre as propostas do relatório do CEWG, por meio de consultas em níveis nacional, regional e global, com vistas a posteriores avaliações na AMS de 2013. Sem dúvida, o documento da AMS foi um desfecho político satisfatório, para o qual o protagonismo e a habilidade negociadora do Brasil e da Unasul foram cruciais.
Para o país, a adoção de um instrumento global dessa natureza trará relevantes recursos ao Complexo Industrial da Saúde e novos parceiros para a busca de soluções tecnológicas, constituindo uma perspectiva importante em face da corrente crise mundial de inovação da indústria farmacêutica. O êxito desse processo possibilitará a convivência construtiva de modelos de incentivo complementares em consonância com os objetivos mais elevados da saúde pública e da política tecnológica brasileira.
*Paulo Buss é diretor do Centro de Relações Internacionais em Saúde e ex-presidente da Fundação Oswaldo Cruz
*Claudia Chamas é pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz e ex-vice-presidente do CEWG
Publicado em 31/8/2012 (originalmente publicado no jornal Valor Econômico).
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