A segmentação e a iniquidade do sistema de saúde brasileiro

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  • 15 de Março de 2013

Confira a entrevista concedida à IHU On-Line do presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), Luis Eugenio Portela Fernandes de Souza

“Infelizmente, os sucessivos governos brasileiros, desde 1988, vêm abdicando do Sistema Único de Saúde (SUS). Basta lembrar que nunca foi cumprida a disposição transitória da Constituição da República, que determina a aplicação de 30% dos recursos da Seguridade Social na saúde”. A constatação é de Luis Eugenio de Souza, ao comentar o financiamento público de planos de saúde privados.

Em entrevista concedida à IHU On-Line, o presidente da Abrasco assinala que a “existência de planos privados financiados com recursos públicos aponta o caminho oposto: um sistema segmentado e desigual e, além disso, ineficiente como demonstra a experiência norte-americana”.

Crítico dos planos de saúde, Souza ressalta que eles abordam saúde como uma “mercadoria”, “a capacidade de pagamento é o critério principal para definir o acesso aos serviços”. Para ele, os planos “oneram o SUS, pois selecionam sua clientela entre os jovens e sadios, restringindo a cobertura de idosos e portadores de doenças crônicas, que são atendidos no SUS”.

Luis Eugenio Portela Fernandes de Souza é graduado em Medicina e mestre em Saúde Comunitária pela Universidade Federal da Bahia, e doutor em Saúde Pública, pela Universidade de Montreal. É professor da Universidade Federal da Bahia e coordenador do Programa de Economia, Tecnologia e Inovação em Saúde do Instituto de Saúde Coletiva.

IHU On-Line – Que aspectos demonstram a “intenção” do governo federal de abdicar do Sistema Único de Saúde – SUS, para avançar na consolidação de planos de saúde no país? Quais as implicações dessa iniciativa?

Luis Eugenio Portela Fernandes de Souza – Infelizmente, os sucessivos governos brasileiros, desde 1988, vêm abdicando do SUS. Basta lembrar que nunca foi cumprida a disposição transitória da Constituição da República, que determina a aplicação de 30% dos recursos da Seguridade Social na saúde. No atual governo, a recusa de destinar 10% das receitas brutas da União para a saúde, como previa a Emenda Constitucional n. 29, foi um sinal preocupante. E agora esta notícia sobre uma proposta de ampliar os subsídios às operadoras de planos privados deixa em alerta a todos os que lutam pelo SUS.

De acordo com a lei, o SUS é um sistema único, universal e igualitário. A existência de planos privados financiados com recursos públicos aponta o caminho oposto: um sistema segmentado e desigual e, além disso, ineficiente como demonstra a experiência norte-americana.

IHU On-Line – Em artigo recente publicado no jornal Folha de S.Paulo, o senhor afirma que o desmonte do SUS vem sendo negociado pela presidente Dilma Rousseff e donos de planos de saúde, que financiaram a campanha presidencial de 2010. Quem são esses financiadores e quais suas relações com o governo federal?

Luis Eugenio Portela Fernandes de Souza – Os professores Mário Scheffer e Lígia Bahia, coautores do artigo mencionado na pergunta, realizaram um estudo (ainda inédito) sobre a participação das empresas de planos de saúde no financiamento de campanhas eleitorais. Utilizaram apenas informações oficiais, apresentadas pelos partidos à Justiça Eleitoral. Dentre essas informações, consta a de que a campanha presidencial do PT recebeu um milhão de reais da Qualicorp.

IHU On-Line – Como funciona o sistema de gestão e de sustentabilidade do Sistema Único de Saúde e dos planos de saúde brasileiros?

Luis Eugenio Portela Fernandes de Souza – A gestão do SUS é tripartite, pois envolve as três esferas de governo – federal, estadual e municipal. Para coordenar as ações, existem a Comissão Intergestores Tripartite (nacional) e as Comissões Intergestores Bipartites (estaduais). De modo geral, a excecução das ações é de responsabilidade municipal, o financiamento é compartilhado e a coordenação, dos estados e da União.

Além disso, a gestão do SUS é participativa: os Conselhos de Saúde, com forte representação dos usuários e dos trabalhadores da saúde, têm a responsabilidade de definir diretrizes e fiscalizar o poder Executivo, apreciando os planos e os relatórios de gestão.

Os planos de saúde privados, geridos por empresas, são regulados pela Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS. A ANS se ocupa principalmente de fiscalizar a “saúde” financeira das empresas, para proteger o consumidor.

A gestão do SUS sofre de todos os problemas da gestão pública: burocratização, descontinuidade administrativa, falta de qualificação profissional, financiamento instável, etc. Contudo, comparativamente a outros setores, o desempenho gerencial do SUS é dos melhores, se se observa, por exemplo, a alta proporção de execução orçamentária do Ministério da Saúde e das Secretarias da Saúde.

Quanto à sustentabilidade do SUS, no sentido da capacidade de continuar a dispor, no futuro, os mesmos recursos de que dispõe hoje, não há nenhuma garantia. Como a proposta de ampliação dos subsídios aos planos privados parece sugerir, nem os insuficientes recursos atualmente alocados estão garantidos.

No caso dos planos privados, a história tem sido de custos crescentes para os beneficiários. Nos EUA, os custos com a assistência à saúde têm sido a causa mais frequente de falência das famílias. Ou seja, a perspectiva de sustentabilidade dos planos é mais precária que a do SUS.

IHU On-Line – Quais são as principais lacunas entre o SUS e os planos de saúde brasileiros? O que a atual situação de ambos demonstra sobre o sistema de saúde brasileiro?

Luis Eugenio Portela Fernandes de Souza – O SUS oferece atenção básica e serviços de vigilância para toda a população. Oferece serviços de alto custo como transplantes, terapia renal substitutiva, UTI, atendimentos a urgências, etc., que também cobrem a toda a população, embora haja dificuldades de acesso. As grandes lacunas são os serviços especializados – consultas, exames e procedimentos –, sobretudo os de caráter ambulatorial e as ações de promoção da saúde, que devem incidir sobre os determinantes sociais da saúde.

Já os planos de saúde oferecem apenas consultas, exames e procedimentos especializados para 25% da população, com um gasto per capita que é o triplo do gasto per capita do SUS. As barreiras de acesso a esses serviços, mesmo para quem paga planos caros, são grandes: autorizações prévias, demora, negação do serviço. Acrescente-se que a maioria das pessoas tem planos de saúde vinculados às empresas em que trabalham e, assim, se perdem o emprego ou quando se aposentam deixam de ter direito a usar o plano. Esta situação demonstra a segmentação e a iniquidade do sistema de saúde brasileiro.

IHU On-Line – Considerando a caminhada do SUS desde a sua implantação, há a necessidade de uma reformulação e de retomar as lutas da reforma sanitária?

Luis Eugenio Portela Fernandes de Souza – Sem dúvida. É preciso reformular as políticas de saúde no sentido de cumprir o que determina a lei. São necessários mais recursos para a saúde, com investimento para a expansão e a qualificação dos serviços, com a conformação de redes integradas, a qualificação e a fixação de trabalhadores de saúde, a profissionalização da gestão e o fortalecimento de um complexo industrial da saúde que produza os insumos que a atenção às necessidades de saúde do povo brasileiro exige.

Uma reformulação nesse sentido depende, fundamentalmente, da mobilização de trabalhadores e setores populares. O movimento da reforma sanitária conquistou, nos anos 1980, a inscrição do direito à saúde na Constituição porque soube se articular com o movimento pela democratização do país. Hoje, é necessário que os defensores desse direito se articulem com os movimentos populares que lutam pelo desenvolvimento com justiça social.

IHU On-Line – Por quais razões os planos de saúde não conseguem ser uma alternativa ao SUS e vice-versa? Em sua avaliação, por que eles “não aliviam nem desoneram o SUS”?

Luis Eugenio Portela Fernandes de Souza – De acordo com os princípios do SUS, a saúde é um direito humano a ser assegurado a todos: as necessidades de saúde são o único critério aceitável para determinar o acesso a serviços de saúde. Ao contrário, para os planos de saúde, ela é uma mercadoria e a capacidade de pagamento é o critério principal para definir o acesso aos serviços. Portanto, são duas concepções antagônicas.

Na prática, os planos oneram o SUS, pois selecionam sua clientela entre os jovens e sadios, restringindo a cobertura de idosos e portadores de doenças crônicas, que são atendidos no SUS. E mesmo os jovens, quando têm problemas graves, são encaminhados ao SUS. Mesmo o ressarcimento, que cresceu bastante no atual governo, não é capaz de reverter esse quadro.

IHU On-Line – Quais são as principais mudanças a serem feitas no âmbito do sistema de saúde para garantir atendimento de qualidade aos brasileiros?

Luis Eugenio Portela Fernandes de Souza – Para garantir atenção de qualidade, deveriam ser implantadas redes integradas de serviços de saúde, coordenadas pela atenção primária, englobando todos os níveis de atenção – desde a promoção até a recuperação da saúde, passando pela prevenção de doenças e agravos. Para isso, são necessários mais recursos para o SUS, a serem aplicados prioritariamente na qualificação da força de trabalho, com a instituição de planos de carreiras que estimulem a dedicação exclusiva ao serviço público.